Sílvia Ester Orrú
A sociedade costuma padronizar as pessoas como "normais", quando exercem uma profissão, são casados e possuem filhos, mesmo que, preconceituosamente, sejam tidas e, não raramente evitadas, por parecerem "esquisitas" ou diferentes da maioria das pessoas conhecidas
Para se alcançar melhor compreensão sobre o autismo e as implicações contidas no quadro sindrômico, visando a educação da criança autista, é preciso ter conhecimento sobre o desenvolvimento normal da criança e suas funções desenvolvidas, para que haja distinção do que seja realmente um comportamento autista. Discernindo suas características principais, seus limites, seu potencial capacitador, suas necessidades e prioridades que precisam ser estudadas e trabalhadas, com a finalidade de se proporcionar à pessoa com autismo, maior estabilização emocional possível e nível de desenvolvimento global mais próximo da normalidade.
Pessoas com autismo apresentam, desde cedo, um distúrbio severo do desenvolvimento, principalmente, relacionado a sua comunicação e interação social. Mas, por outro lado, podem apresentar incríveis habilidades motoras, musicais, de memória e outras, que muitas vezes, não estão de acordo com sua idade cronológica, apresentando-se bem mais adiantada do que deveriam estar.
Alguns autores têm se dedicado ao estudo do autismo desde a fase fetal, através das anamneses e entrevistas realizadas com mães de crianças autistas sobre seu período de gestação. O propósito deste trabalho é conhecer essa criança em circunstâncias mais concretas. Limitar-se-á a comentar seu processo de desenvolvimento a partir de seu nascimento.
De acordo com as escalas[1] de Shirley Apud Barros, (1991) Erickson (1976) e Piaget (1971), o desenvolvimento da criança ocorre de forma evolutiva, dentro de um determinado tempo, respeitando a individualidade de cada um, independente de raça, sexo ou grupo social ao qual pertença. Contudo, não é assim que se sucede com a criança com autismo. Seu desenvolvimento se dá de uma forma diferente e não padronizada.
Enquanto um bebê de dois a quatro meses de idade já possui capacidade para responder a estímulos internos e externos, tais como: chorar quando sente fome ou dor, manifestar um comportamento diferente quando não está confortado, reconhecer a voz de sua mãe e é capaz de reproduzir em si mesmo as expressões produzidas pelos adultos, um bebê autista, nem sempre reagirá da mesma forma.
Segundo o depoimento da mãe de W.F. (26 anos), um rapaz autista, quando bebê, poderia deixá-lo durante horas em seu berço, até mesmo, sem alimentá-lo, que reação alguma se percebia. Bebês autistas mostram-se em geral, muito passivos e indiferentes aos sinais sociais do meio em que vivem.
O desenvolvimento psicossocial do ser humano ocorre, naturalmente, desde a mais tenra idade, iniciando-se a partir do vínculo materno e produzindo através do contato diário com a mãe ou com aqueles que o cercam, experiências diversas que o levam a ter sensações de confiança, bem estar, amor ou sensações que sejam o inverso das citadas, que muito contribuirão para a formação da pessoa.
Pessoas com autismo, em geral, reagem de forma diferente. Falta-lhes a discriminação emocional, a empatia com o outro e a manifestação do desejo por algo. Percebe-se o desinteresse e falta de iniciativa desses bebês, diante de móbiles pendurados ou outros objetos colocados em seus berços. Normalmente, por volta dos quatro aos oito meses de idade, a criança já demonstra o desejo de alcançar o objeto, pegar e trazê-lo consigo, levando-o à boca ou jogando-o ao chão.
A linguagem apodera-se do homem, evoluindo-se dia após dia por meio da convivência e do diálogo que temos com outras pessoas, interagindo com elas desde pequenos. A partir do nascimento, a criança se expressa através de pequenos ruídos guturais, murmúrios, sorrisos, balbucios até dizer uma e depois, várias palavras no decorrer do desenvolvimento de sua linguagem.
Todavia, na maioria das vezes, observa-se retardo no desenvolvimento da linguagem de crianças com autismo ou regressão da capacidade de fala já adquirida, indo ao extremo do emudecimento (perda da fala) em certos casos, como é o caso de A.C., (4 anos) que passou naturalmente pelas fases da linguagem até completar dois anos de idade. Mas pouco tempo depois se emudeceu. Ao contrário do exemplo anterior, E.M. (9 anos), com autismo e síndrome de West, é uma criança que tem aos poucos, desenvolvido sua fala. Verbaliza várias palavras, canta diversas músicas, usa pequenas frases para se expressar e responde a perguntas simples, o que equivaleria ao desenvolvimento normal de uma criança com três anos de idade. Não coincidindo com ambos os casos citados, W.S. (6 anos) e R.T. (8 anos), nunca falaram, enquanto, E.C. (5 anos), apenas emite sons.
Crianças autistas que não apresentam outras síndromes ou lesões comprometedoras do desenvolvimento motor podem manifestar atrasos para começarem a andar, tal como aconteceu com W.F. (26 anos) que andou aos dois anos de idade, sem chegar a rastejar-se ou engatinhar. Porém, nota-se a necessidade de estimulá-los através de exercícios específicos realizados por fisioterapeutas e/ou outros estímulos globais que o motivem a andar, dependendo do caso. W.S. (6 anos) andou, aproximadamente, com quatro anos. Sua professora, diariamente, o colocava em pé e manipulava seus passos. Após firmar-se sozinho, davam passeios pela escola, desde que a professora estivesse segurando suas mãos. Atualmente, a criança anda sem auxílio, mas não se levanta do lugar em que estiver sentada sem que seja ajudada por alguém.
O atraso ou a falta permanente do controle esfincteriano pode ser observado em pessoas com autismo, como também, a não percepção e identificação com o progenitor de seu próprio sexo. Esta fase é merecedora de consideração para a formação da pessoa. A tendência ao isolamento claramente notada, pois tanto as pessoas que convivem com esta criança como as que lhe são desconhecidas, são por ela pouco distinguidas. A decepção dos pais diante do comportamento de seus filhos torna-os, muitas vezes, descrentes e frios com relação à possibilidade ou não de um dia conseguirem relacionar-se com eles.
É comum que crianças autistas tenham apego inadequado a determinados objetos e rotinas. Por esta razão, é preciso que se realize um trabalho estruturado e organizado com a mesma, para que se tire proveito do uso desse apego rotineiro. A fixação em realizar determinadas atividades, repetir permanentemente certas ações, preferir usar as mesmas roupas etc., são problemas de comportamento característicos dessas crianças que devem ser trabalhadas em seu dia a dia pelos pais e professores. Tem o intuito de modificar tais comportamentos por outros úteis e adequados ao momento, tendo em vista o desenvolvimento de sua autonomia, iniciativa e compreensão daquilo que está fazendo ou do que precisa fazer.
Distúrbios na alimentação, ausência de mastigação e paladar bizarro são habituais no autista. R.T (8 anos), rejeitava qualquer coisa que lhe oferecesse durante o almoço que não fosse pão, bolacha ou cenoura. Desde a segunda metade do ano de 1999, passou a aceitar alguns alimentos, como macarrão e salsicha. Possui paladar bizarro, comendo terra ou sabonete. W.S (6 anos) não tem preferências em sua alimentação, mas ingere sem nenhuma mastigação. E.M. (9 anos), não apresenta nenhum desses fatos. E.C. (5 anos), também possui paladar bizarro, lambendo sabonetes.
O processo de definição de identidade, normalmente iniciado a partir dos doze anos de idade, fase da puberdade e adolescência, fortalecido por meio dos aspectos observados nos pais, professores, amigos etc., tanto para serem preservados como abandonados em sua personalidade, concorre para o descobrimento e desenvolvimento da própria identidade e o enquadramento a um grupo social. É a fase onde o crescimento físico, variável de pessoa para pessoa, se dá com vistas para a definição adulta, considerando os fatores genéticos e os elementos do meio. Acontece, também, o amadurecimento sexual para a reprodução de sua própria espécie. Nesta fase, o isolamento social, a hostilidade e os problemas de disciplina inclinam-se a acontecer.
A puberdade, como um fenômeno essencialmente biológico, exerce transformações no organismo em sua estrutura e função. Devido o rápido crescimento e as alterações sofridas pelo organismo, surgem sintomas de cansaço e fadiga, com possíveis perturbações gástricas e falta de apetite.
As meninas, em especial, durante os primeiros períodos menstruais, estão sujeitas a dores de cabeça, dores nas costas, câimbras, dores abdominais seguidas de vômito, desmaios, irritações da pele, inchaços, tendendo a ficarem irritadas. Com o regular da menstruação, tais sintomas estão propensos a desaparecer, apesar de continuarem a existir, representando um período de sensibilidade física e emocional para algumas pessoas.
Para a pessoa com autismo, a puberdade e a adolescência também podem representar um período difícil de transição. Grandin (1992) comenta esta época como a pior fase de seu comportamento, a partir de sua primeira menstruação. Kyrkou (1995), em seu estudo sobre os sintomas associados com o ciclo menstrual em mulheres com autismo, explica que pessoas com autismo reagem de modo diferente ao período menstrual, tanto na fase da adolescência como posteriormente, a cada ciclo.
Os ataques de pânico, inquietude, cólicas causam uma situação mais propensa para hipersensibilidade do que ansiedade, ocorrendo de forma mais intensa em pessoas com a síndrome que possuam severo comprometimento de linguagem, pois não conseguem expressar o que estão sentindo ou o local a onde se concentra a dor. O uso de medicamentos pode ser útil para o alívio das dores e para o relaxamento físico e psicológico.
A criança autista, tal como qualquer outra criança, atravessa diversas etapas em seu desenvolvimento e conseqüentemente, torna-se um jovem-adulto. Pouco se fala sobre o jovem e o adulto com autismo, mas sem dúvida nenhuma, eles também chegam a essa idade e muitas vezes, chegam esperando por algo, assim como a maioria daqueles que têm a mesma idade.
Grandin relata que sentia-se isolada e só, que não sabia se iria encontrar alguém para amar. Em razão da complexidade que sentia ser os relacionamentos pessoais, optou por ficar sozinha e dedicar-se a estudos sobre autismo e sobre animais.
A sociedade costuma padronizar as pessoas como "normais", quando exercem uma profissão, são casados e possuem filhos, mesmo que, preconceituosamente, sejam tidas e, não raramente evitadas, por parecerem "esquisitas" ou diferentes da maioria das pessoas conhecidas. Casos assim podem ser típicos de autismo, porém, não tão severos como os que estão sendo citados. Pessoas com rotinas exageradamente estabelecidas, chamadas de alienadas pelas outras com quem convive, confusas no falar, complicadas para relacionar-se e com tendências ao isolamento, podem ser pessoas com características do autismo.
É possível e não incomum, encontrarem-se capacidades especiais que se contrastam com os déficits de comportamento existentes na pessoa com autismo em outras áreas. Temple Grandin era e é espetacular na área de zootecnia e construção de certas aparelhagens utilizadas com animais. David Hefgott tinha um talento único para o piano, Einstein, possuidor de diversos traços autísticos, até os três anos não havia articulado palavra alguma e só passou a se expressar de modo fluente aos dez anos, fora um gênio da ciência. W.F. (26 anos) com seis anos de idade já lia e escrevia de tudo, interessando-se por enciclopédias que mostrassem o corpo humano, hoje, está no último ano medicina, especializando-se em neurocirurgia. R.F (12 anos), com síndrome de Asperger, possui uma habilidade fantástica para memorizar números de telefone, datas de aniversário, cálculos de calendários, nomes e cores das bandeiras mundiais.
No filme: "Rain Man", com Dustin Hoffman, é mostrada a contagem de cartas e palitos de fósforos por um autista de alto-funcionamento, fato este, verídico em autistas que mantêm sua capacidade visual aguçada.
Habilidades especiais como estas, podem surgir repentinamente, desconhecendo-se sua origem. Elas devem ser canalizadas da melhor maneira possível, com o fim de se aproveitar o potencial nelas contido para o enriquecimento psico-emocional da pessoa com autismo, aumentando as possibilidades de uma sociabilização de melhor qualidade, de modo que tal habilidade lhe seja prazerosa e funcional em sua vida.
O autismo é umas das síndromes mais severas, comprometedoras e incapacitantes, no que diz respeito ao desenvolvimento global da criança. Não é raro trazer consigo outras patologias e condições clínicas associadas [2]. Por não ser diagnostica através de exames laboratorias, dificulta o processo de seu reconhecimento, retardando seu diagnóstico e angustiando os pais da criança.
Para que se realize um diagnóstico seguro desta síndrome, é preciso um vasto protocolo que atravessa desde os dados de uma anamnese, investigação genética até longas observações comportamentais da criança. Para fins de um diagnóstico mais preciso, têm-se utilizado os critérios do CID 10, DSM IV e escala CARS para autismo, além da observação do comportamento, já que a mesma é definida atualmente como uma "síndrome comportamental com etiologias múltiplas e curso de um distúrbio de desenvolvimento" de acordo com Gillberg (1990). Até 1989, dizia-se estatisticamente que, a síndrome acometia crianças com idade inferior a três anos, com predominância de quatro crianças a cada dez mil nascidas. Manifestava-se majoritariamente em indivíduos do sexo masculino, sendo a cada quatro casos confirmados, três do sexo masculino e um caso para o feminino.
Segundo Gaspar (1998), neuropediatra, o autismo tem sido notório em vinte crianças a cada dez mil nascidos, número que vem crescendo nos últimos anos, em razão de maiores estudos e divulgações sobre a síndrome que atinge indivíduos de todos os países do mundo, não se restringindo a raça, etnia ou grupo social.
De acordo com a ASA - Autism Society of América, (1999) "o autismo é um distúrbio de desenvolvimento, permanente e severamente incapacitante". No Brasil, devem existir, estatisticamente, cerca de sessenta e cinco mil a cento e noventa e cinco mil autistas, baseado na proporção internacional, já que nenhum censo semelhante foi realizado.
ESCALAS [1] DE SHIRLEY, ERICKSON E PIAGET
EVOLUÇÃO DOS MOVIMENTOS DO BEBÊ DE 0 A 18 MESES de M.M. SHIRLEY
DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL de ERIC ERICKSON
DESENVOLVIMENTO DA
LINGUAGEM de PIAGET
IDADE
MOVIMENTOS
IDADE
ESTÁGIOS
IDADE
LINGUAGEM
0 a 1 mês
e meio
Raros movimentos de reflexos. Os punhos permanecem fechados.
0 a 1 ano e meio
Confiança x
Desconfiança
4 semanas
Pequenos ruídos guturais. Atende ao som de uma campainha.
Cerca de 2 meses
As mãos batem no ar, as pernas se agitam, os punhos permanecem sempre fechados.
1 e meio a 3 anos
Autonomia x
Vergonha
16 semanas
Murmúrios. Ri. Vocalização social.
De 4 a
6 meses
As mãos se estendem para o objeto, abrem-se e chegam a segurá-lo por um movimento.
3 a 6 anos
Iniciativa x
Culpa
28 semanas
Balbucia. Vocaliza e escuta suas próprias vocalizações.
De 7 a
8 meses
As mãos pegam o objeto e o levam à boca ou o jogam ao chão. O bebê já rasteja.
7 a 12 anos
Domínio x
Inferioridade
40 semanas
Diz uma palavra. Atende a seu nome.
De 8 a
10 meses
A criança mantém-se sentada, engatinha e, mais tarde, põe-se de pé dentro do cercado.
12 a 18 anos
Identidade x
Confusão de papéis
12 meses
Diz duas ou mais palavras.
De 10 a
12 meses
A criança anda dentro do cercado, apoiando-se nas grades.
18 a 30 anos
Intimidade x
Isolamento
18 meses
Jargão. Nomeia desenhos.
De 12 a 15
ou 18 meses
A criança começa a andar.
30 a 60 anos
Generatividade x
Auto-absorção
2 anos
Usa frases. Compreende ordens simples.
60 anos
Integridade do ego x Desesperança
3 anos
Usa orações. Responde a perguntas simples.
4 anos
Usa conjunções e compreende preposições.
5 anos
Fala sem articulação infantil. Pergunta: "Por que?"
OUTRAS PATOLOGIAS E INFECÇÕES ASSOCIADAS AO AUTISMO [2]
Acidose Láctica
Síndrome de Coffin-Lowry
Albinismo Oculocutâneo
Síndrome de Cornélia de Lange
Alterações das Purinas
Síndrome de Down
Amaurose de Leber
Síndrome de Ehlers-Danlos tipo II
Citomegalovírus (pré-natal)
Sífilis (pré-natal)
Deficiências Auditivas
Síndrome de Goldenhar
Desordem Marfan-Like
Síndrome de Sotos
Distrofia Muscular Progressiva de Duchenne
Síndrome Fetal Alcoólica
Doença de von Recklinghausen
Síndrome de Hurler
Epilepsia
Síndrome de Joubert
Esclerose Tuberosa
Síndrome de Klinefelter
Fenilcetonúria Não Tratada
Síndrome de Laurence-Moon-Biedl
Herpes Simples (pós-natal)
Rubéola (pré-natal)
Hidrocefalia
Síndrome de Martin-Bell
Hipomelanose de Ito
Síndrome de Noonan
Histidinemia
Síndrome de Rett
Neurofibromatose
Síndrome de Turner
Problemas Pré e Perinatais
Síndrome do X-Frágil
RDNPM
Síndrome de Williams
Retardo Mental
Síndrome de West
Seqüência de Moebius
Trissomia 17 (Mosaico)
Síndrome de Angelman
Anormalidades Orgânicas
Síndrome de Asperger
Outras Cromossomopatias
Síndrome de Bardet-Biedl
Caxumba (pré-natal)
Toxoplasmose (pré-natal)
Varicela (pré-natal)
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Publicado em 19/10/2002 17:39:00
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Sílvia Ester Orrú - Mestre em Educação pela PUC-Campinas. Docente do curso de Pedagogia da Fundação de Ensino Octávio Bastos
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